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Sobre homens, carniça e urubus

04.nov.2024

Conheci Carniça a contragosto. Explico: estava numa roda de pessoas, num dos lançamentos onde também se lançava outro título em que a autora é uma conhecida. Fui até lá por isso, pelo outro livro. Mas enquanto me deliciava por estar de novo num rolê não planejado (soube do lançamento em cima da hora e decidi de supetão ir até lá), cercada de pessoas absolutamente aleatórias que talvez um dia quem sabe a gente se vê de novo por aí, conversando sobre país, política e feijão por cima ou por baixo, numa conversa atravessada vieram elogios e depois um debate sobre o protagonismo do livro. Opa! Estava eu com olhos ávidos pela discussão, me inteirava minimamente do enredo enquanto eles teciam suas teses e paixões pelas personagens. Tudo me pareceu interessante, mas certamente saber que o autor era meu conterrâneo pesou. A minha parte iguaçuana, que já agora é só metade da minha vida, gritou “Opa! Meu vizinho! A gente tem que conhecer seja lá o que for!”. Também me interessou, é claro, o fato de que uma das personagens é uma empregada doméstica, ocupação sobre a qual eu tenho tentado elaborar esteticamente. Assim, volto, eu me vi completamente envolvida com Carniça sem nem mesmo ter olhado a capa antes.

Começo, então, a falar da leitura que fiz com os ouvidos no debate alheio. Uma das pessoas defendia fervorosamente que Vida era a protagonista da história: mulher guerreira que só queria ter o seu momento de mãe, de satisfação com o rumo dos filhos, a casa vazia pra si, o tempo pra si, mas que, ao contrário, ainda estava ali levando o rumo da família. Sem ela, pela tese da leitora, os filhos já teriam rompido o fio que os mantém vivos um dia após o outro. É ela que, sendo rocha, garante que a estrutura familiar fique de pé. De outro lado, sem exatamente discordar da tese, outro leitor argumentava que o processo pelo qual o caçula de Vida passava, incorporando literalmente todos os princípios do neoliberalismo empreendedor do serviço de entregas para quitar a dívida do financiamento estudantil era de muito peso. “É verdade… e no momento em que ele começa a comer banana porque isso evita cãibras… nossa!” O consenso nítido era um deslumbre quanto ao romance. “E aquela partezinha que ele fala da carniça? Poxa, daquele trechinho ali que ele tirou o título… muito perspicaz…” Aqui franzi a testa e apertei os olhos porque me pareceu até desnecessário haver algum trecho no enredo que justificasse o título Carniça de um livro em que o contexto é o imperativo trabalho precarizado de entregas via aplicativo de celular, uma estrutura de relações predatórias em todos os níveis. Pareceu-me óbvia a relação, mas os leitores insistiram que apesar disso havia um brilho no trecho em questão.

Ouvindo toda a conversa, que ainda seguia sobre como a história fisga e traga o leitor, lembrei-me imediatamente da peça de Bertolt Brecht, Um homem é um homem. Na peça, de um modo resumido bem grotescamente, um homem comum, de vida simples, assume a identidade de um soldado e se torna uma máquina de guerra.

Um homem, uma sociedade mortificante, uma aspiração, uma oportunidade de realizar a aspiração, uma transformação.

Pareceu-me um diálogo interessante e audaz, ler a contemporaneidade e encontrar nela a operação de engrenagens que ainda fazem de homens coisas mortas-vivas. É daqui, desse caldo todo, que comecei enfim a ler com os olhos o livro.

De cara, já nas primeiras páginas, senti que o narrador tinha mais peso que as personagens. Seu olhar, sua crítica, seu deboche, seu desprezo, sua complacência, sua postura julgadora, fez com que eu decretasse para mim mesma a minha defesa tardia num debate que já não existe mais: o narrador é o meu protagonista! E quem é ele, afinal? Mistério puro. Ninguém que mereça ser explicitamente mencionado e nem alguém que mereça ser desprezado. Ele tem algo íntimo com aquela nossa consciência implacável que só existe a posteriori dos nossos tropeços, inseguranças e erros. Que só existe com a distância dos acontecimentos e ainda sim conserva alguma afinidade com eles. E é ele, no meu humilde ponto de vista, o responsável por dar às linhas viscosidade. Apesar de fisgada, senti ser impossível tragar o romance com ímpeto. Li em duas semanas, sentindo quase sempre o peso dessa consciência crítica do narrador, mesmo nos momentos de pura cumplicidade. É ele quem põe a lupa nos fatos do romance e nos revela toda a sorte de misérias, que nos pega pela mão e diz “você pode estar completamente molhada, mas você e a água são coisas diferentes”. E nisso reside um sabor amargo desejante que só chocolate 70% cacau possui.

Mas assumindo a personagem principal oficial e sua transformação, me parece que há uns toques perspicazes sobre a atualidade. Em Brecht, por exemplo, o contexto se impõe sobre o homem porque é um contexto de guerra, em que se impera o Estado de Exceção. De algum modo, essa exceção é a chave que autoriza todos os movimentos que desenrolam a trama da peça que citei. Vemos um processo de coisificação, de abandono de si numa situação extrema. O caso do nosso jovem recém-formado é bem outro, embora a violência da sociedade do romance seja tão gorda quanto na trama brechtiana. O contexto é o da prosperidade, da regra do capitalismo democrático e vencedor a pleno vapor. Mas, diferentemente do que se poderia imaginar, esse contexto não permite um rol de escolhas maior e melhor que daquele da guerra. Aqui, o contexto se impõe sobre o homem também com muita força e a chave do progresso é tão perversa quanto a da exceção. E isso ocorre mesmo que nosso herói tenha mais consciência do processo social que se impõe sobre ele. Carniça é uma trama épica contemporânea e isso se vê logo de começo, mesmo que uma porção romântica lá no fundo torça pela redenção da personagem.

Rafael Simeão
Rafael Simeão

O que me parece bastante perspicaz no jogo que o autor desenha é que o contexto capitalista do jovem cheio de esperança é mais complexo que apenas o discurso da meritocracia ou o da sobrevivência ou o da vida estável.

A trinca jovem bacharel desempregado-trabalhador precarizado de carteira assinada-empregada autônoma encarna em um só tempo a agudização da vitória/crise do capitalismo. A trajetória pessoal exemplar desse jovem que se forma apesar de todas as limitações, mas não consegue um emprego digno fracassa porque esse modelo de profissionalização e carreira já é fracassado, esgotado. Nós, do nosso lugar de subdesenvolvimento, vivemos apenas o eco desse paradigma. E para isso basta ver as vicissitudes dos trabalhos de Roni e Vida – que ainda se cruzam com o refinamento da nossa história colonial. Portanto, não se trata de, com o percurso da personagem principal, por à prova o discurso meritocrático pois ele já está invalidado de princípio, desde as primeiras linhas. O romance é épico, mas não são deuses ou o discurso dominador que selam o destino do herói, senão uma base material e histórica bastante concreta.

Coopera em força poética e simbólica com o desenvolvimento da trama, o fato literário de haver nomes apenas para algumas personagens. Estabelece-se uma tensão entre identidade e trabalho ou ainda entre identidade e consciência social de si. As personagens nomeadas ou têm no trabalho um pilar para sua identidade ou possuem uma consciência bastante evidente sobre o seu estar no mundo, como é o caso de Lia, que apesar de concorrer com o herói no processo de profissionalização não é definida por ele. Seria possível traçar, inclusive, uma linha de gradação dessa tensão. Vida ocuparia uma ponta – ela é alguém que possui sua vida bastante imbricada com o trabalho, mas ao mesmo tempo mantém uma autonomia dele – e a sua irmã, vítima de violência, com quase nenhuma autonomia, ocuparia a outra. Nosso herói, como alguém que está tentando construir a sua identidade, oscila na linha. Ele até consegue angariar um apelido, Sem-teto, mas ainda é algo que marca mais a ausência.

Nessa tensão entre ser e ser coisa, em que as personagens estão mergulhadas, salta aos olhos a solidão de cada uma. Elas convivem, interagem, se relacionam e até se apoiam, mas a dor profunda de ser apenas o que se consegue ser, é vivida em absoluta solidão. O que adensa ainda mais as experiências de construção e manutenção dos laços que são narradas. Os problemas do processo social são vividos como problemas subjetivos e as soluções apontadas são sempre individualizadas. Junto com as personagens, nós, leitores, somos jogados no poço de um individualismo imperativo. A exceção, para nos salvar do desespero, vem com a personagem Lia, que aparece quase como um oásis em meio ao deserto capitalista. Integrante de um movimento social, é ela que aponta novas possibilidades de existência. Contudo, como só a vemos pelos olhos de Sem-teto, ela fica orbitando o enredo como uma espécie de miragem, a gente vê, mas não pode alcançar. Ela é quase como o horizonte do final do filme A classe operária vai ao paraíso (1971), nebuloso.

Por fim, Carniça traz uma crítica social sagaz, adensada em pouco mais de cem páginas. É um livro falso magro, cheio de gordura para ser queimada em cada entrelinhas. Ele narra, em algum grau, a nossa jornada para conquistar a humanidade que nos é negada cotidianamente. Submetidos a relações e processos que nos reduzem a coisas, máquinas, urubus e carniça, desejamos a salvação de Sem-teto porque desejamos a nossa própria salvação. Escapar ao estado geral de putrefação já é tarefa das grandes, mesmo pra Lia. E nisso é ótimo que o romance não se rende a toda profusão romântica cultural em que o autor, eu e toda nossa geração fomos doutrinados. É preciso manter, em nossos tempos, a crítica afiada – ainda que a nossa esperança ingênua seja degolada. Do livro, pra mim fica o mesmo tipo de sensação que tive ao ler Tchekhov, uma espécie de estupor com a profundidade de um corte feito por folha de papel.

“Um sujeito solitário, paciente, minucioso se funde a uma figura que carrega o mesmo nome que ele na plataforma, se mistura às linhas azuis que se encerram em bandeirinhas quadriculadas, aos estabelecimentos e destinos. Enfim controla os algoritmos. É uma máquina de entregas voando acima de poças, grandes sacos de lixo e conformismo, uma estrutura orgânica que simplesmente aceita, recolhe, percorre e entrega para recomeçar o ciclo outra e outra vez e que quando nota já é madrugada, dezenas e dezenas de pessoas alimentadas numa noite pós-temporal devido a seu destemor.”

Livro Carniça de Rafael Simeão

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Mulher, negra, oriunda da Baixada Fluminense, filha de pedreiro e de empregada doméstica. Atua como curadora, artista, educadora e pesquisadora.