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Niilismo e encantamento em Quando chega nossa vez acaba, de Rafael Simeão.

16.abr.2025

Quando chega a nossa vez acaba (2024), de Rafael Simeão, publicado pela Editora Alfaguara, é um livro de contos que, por motivos variados, consegue estabelecer uma unidade consistente entre as narrativas, formando um conjunto que se fortalece ao ser lido na ordem proposta pelo autor. Primeiramente, isso ocorre porque as histórias e os personagens se relacionam. Sem entrar em maiores detalhes, essas conexões desdobram um universo ficcional complexo, que o autor descreve e narra com agilidade e um estilo solto, quase informal, sem perder a densidade de nenhum personagem. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia de aproximação com o próprio universo narrado.

Concomitantemente, e de forma ainda mais persistente do que a relação entre os personagens, há uma atmosfera compartilhada: às vezes festiva, beirando o banal, como em um encontro no botequim na manhã de sábado; ou relativamente fugaz, como na busca noturna por sexo, mesmo sendo “o melhor sexo das nossas vidas”; muitas vezes tensa, como na montagem de um plano algo maquiavélico e mórbido; ou ainda intensa, como no cotidiano de um trabalho pesado e ilegal.

Essa atmosfera é sempre densa, ainda que não necessariamente opressiva, pois transmite a sensação modorrenta de uma desilusão estabelecida, de uma vida sem grandes ilusões ou expectativas, de um fim próximo e inevitável ou de uma descrença plantada – sabe-se lá por quem – e continuamente alimentada, nutrida e, sobretudo, reafirmada, seja de forma consciente ou não, por um tédio fraco o suficiente para que os dias se sucedam sem exercer sobre os personagens uma força capaz de impulsioná-los a grandes transformações.

A dificuldade em descrever precisamente essa atmosfera decorre justamente da forma específica como tal descrença, ou niilismo, se manifesta. No entanto, considerando o entorno humano e social revelado nos contos, pode-se dizer que essa ausência de atração também é herança de uma realidade insistentemente difícil, cujos problemas se repetem sem solução.

Certamente, o niilismo não é a única atração da obra, mas é a partir dele que propomos uma interpretação, pois entendemos que se trata do termo mais apropriado para descrever a lógica da atmosfera que impregna o livro. Dessa maneira, ao refletir sobre a relação entre as histórias e perceber que o mais antigo dos contos escritos é também aquele em que, segundo esse ponto de vista, o universo psicológico está mais bem desenvolvido, a saber, “Viva os pombinhos”, torna-se possível compreender a força motora do livro: o niilismo.

Esse elemento se estabelece no diálogo implícito entre os personagens deste e dos demais contos, bem como no mundo e nos afetos que compartilham. Assim, o niilismo não surge como mero efeito de um mal-estar social ou algo semelhante, mas como a própria estrutura[1] montada para que o desencanto se dissemine entre personagens cuja força política parece estar muito viva e atenta, como a jovem Amanda, do conto que dá título ao livro. Esses personagens não conseguem se desvencilhar de um cotidiano que carece de força para a criação de novos horizontes, arrastando os dias para uma repetição quase labiríntica de uma realidade que fracassou em oferecer soluções coletivas e encantamento existencial. No entanto, é importante ressaltar que tal realidade não é descrita pelo autor de maneira banal e clichê; pelo contrário, há uma diversidade de formas de reiterar a complexidade desse estado de coisas.

Na primeira história, “O melhor sexo das nossas vidas”, um conto rápido e sensual, como um flerte em uma noite de verão carioca, o autor nos brinda com a memória e a descrição do desejo de um encontro que, a despeito de sua leveza e sensualidade, revela-se uma prática casual que, sim, deixa marcas, mas não se estabelece como uma força mobilizadora maior, apenas como uma lembrança que eventualmente deve se presentificar em uma noite (e tanto) de prazer.

Aqui, vale a pena chamar a atenção para uma questão relevante em relação à forma de ler a fugacidade do encontro narrado. No início dos anos 2000, surge uma corrente artística e um tipo de análise a ela ligada que passa a privilegiar o fugaz, a delicadeza e a leveza em oposição às grandes elaborações, aos grandes temas e às projeções das experiências estéticas anteriores. Para esse novo circuito e seus interesses, o afeto ganha centralidade[2]. Como exemplo dessa corrente, o autor Denilson Lopes, ao analisar o filme Transeunte, de Erick Rocha, afirma: “O que me fascina em Transeunte é que não há uma (melo) dramaticidade. (…) Me fascinam estes tempos mortos, sem nostalgia, sem utopia, sem tédio, sem o temor do tédio, do vazio, mas o difícil, belo e insípido cotidiano”. À afirmação, segue-se a constatação da presença marcante e positiva da “sensação (…) um afeto pictórico que nos abriu a porta de Transeunte” (LOPES, 2013, págs. 7 e 8). Lopes destaca a presença da sensação nos interstícios do vazio citado, ou seja, há um elogio aos tempos mortos, à beleza da banalidade, própria do que é menor, corriqueiro e algo precário. Além disso, essa beleza não diz respeito a uma construção intelectual ou dramática, mas propriamente sensível.

Sem entrar nos pormenores do debate, cabe apenas ressaltar que não é o caso de reconhecer tal positividade no conto citado. Ainda que também seja da sensação que tratamos aqui, não podemos ver positividade na forma como ela é mobilizada no texto, pois o que aparece de maneira clara e direta é o encontro entre o prazer fugaz, a crença de estar perdido e a certeza de retornar para um cotidiano de reclamações e recomeços empilhados na marcha dos desejos coagulados.

Se me demoro um pouco nessa elaboração, é porque, ao ler o livro, esse conto pode parecer um ponto fora da curva, mas não se trata disso. A sensualidade do encontro entre os dois jovens não pode turvar sua eventualidade fraca, a qual, diferentemente do filme citado, não se desdobra em pequenas paisagens (ou cenas) de um real compartilhado em sensações que estimulam fabulações locais. Em vez disso, apresenta-nos um personagem que se perde pelas ruas ao fim do encontro e que, no reencontro, está “tentando recomeçar”. De hiato em hiato, o conto serve como uma abertura para contínuas economias do desejo, em que o ressentimento e a insatisfação sobressaem.

O conto que se segue, “Quando chega nossa vez acaba”, trata de uma espécie de férias meio infernais. Aliás, esse meio do caminho é o clima da maioria dos contos, pois, como já foi dito, não se trata de um pessimismo forte, seria afirmativo demais chegar a esse ponto. O que ocorre é a composição de um dia a dia banal, do qual escorre uma morna sensação de que, no fundo, tudo tanto faz, restando apenas pequenos prazeres limitados, cujo ápice é enfraquecido. O enredo acompanha uma família pobre do Rio de Janeiro, em uma ilha que está duplamente cercada: de um lado, a eminência da catástrofe ecológica sufoca o que resta da faixa de areia; do outro, a massa humana, querendo desesperadamente gozar suas férias, ocupa quase todos os espaços do pouco que resta.

Na história em que mais aparecem temas e diálogos explicitamente políticos, dois dos quatro personagens da família – Amanda e seu pai, Jorge – tratam, entre si, de demandas trabalhistas e sociais. No fim, porém, vagam por um caminho interminável e frustrante, que faz a família perder um dos poucos dias em que se obrigam a curtir a praia. Nesse momento, a discussão política dá lugar a um diálogo meio absurdo. Ao conversarem sobre continuar caminhando ou não, no meio de uma espécie de labirinto verde, os dois se desentendem e apontam para a consistência desse labirinto em que se meteram: “Eu acho que de tanto andar uma hora a gente chega em algum lugar, não é possível. Tirou de onde essa certeza, Amanda? Não é pra isso que a gente anda, no fim das contas? Tem gente cansada de andar e não chegar a lugar nenhum, sabia? É logicamente impossível não chegar a lugar nenhum, pai. Tá, então ficar dando volta e no fim das contas sair sempre no mesmo lugar é chegar a algum lugar agora”. É possível notar o estilo informal, citado anteriormente, na construção dos diálogos. Além disso, ressaltamos que, do nosso ponto de vista, o trecho citado não se trata de uma metáfora, mas sim de um diálogo que faz referência a um estado existencial e material em que o absurdo de não sair do lugar, mesmo estando em movimento, parece descrever o desenrolar das vidas desses personagens.

Nos dois próximos contos, o que inclui o paradigmático e já citado “Viva os pombinhos”, além de “Trovoa”, temos uma densa construção psicológica em que a paranoia rege os personagens principais, ainda que com finais distintos para cada um. Nos seguintes, “Tudo preto” e “Um minuto antes do fim”, personagens mais jovens são retratados em relações perturbadas pela incapacidade de agir. Mais uma vez, o autor faz uso relevante de diálogos internos que, em alguns momentos, beiram o delírio e acenam para o solipsismo radical.

Em “Janela azul”, o conto mais delicado e leve do livro, deparamo-nos com o cotidiano de uma senhora idosa que mora sozinha e tenta cumprir seus rituais. A brandura das cenas e a resiliência da personagem, que “era só uma velha, vivendo o fim da vida, com suas idiossincrasias e uma pitada de desgosto”, quase nos levam para outro universo narrativo, mas a atmosfera da solidão e do entorno se sobressaem diante da dignidade espontânea da “velha”.

No conto seguinte, “Bomba-relógio”, mais do que paranoia, o autor nos brinda com diálogos internos que lembram a atmosfera ressentida e conspiratória de Memórias do subsolo, de Dostoiévski. Preso em si mesmo, após ser despedido de um emprego precário, atolando sua vida que era já dura, e depois de muita elaboração obcecada, o personagem encontra um objeto para seu ressentimento e acredita que o ato desdobrado a partir da necessidade que o objeto de ressentimento lhe apresentou irá causar uma reviravolta redentora. Sabemos, porém, que, mesmo sendo esse ato concreto, o desejo é sempre vazio, todo objeto é, no máximo, parcial. Ademais, o ressentimento coagulado pode ser mobilizado para muitas tarefas, mas, se transformado em força para a obtenção desse falso objeto do desejo, há o forte risco de restar nada além do fracasso, que, por sua vez, reforçará o ressentimento em um ciclo vicioso no qual o personagem corre o risco de se aprisionar.

No último conto, “Areia”, vemos um rico universo de personagens do que parece ser o subúrbio carioca. A amizade, o cotidiano, a celebração, o trabalho duro e o carisma do personagem principal – um ex-jogador, pai separado, que agora trabalha como porteiro de uma escola infantil e tem uma dor crônica no joelho, mas ainda vive da nostalgia dos dias do futebol anteriores à dor – se entrelaçam num pesado e ilegal esquema de retirada de areia das praias para a construção civil. É nessa dinâmica que encontramos, em maior ou menor grau, a repetição das diversas paisagens afetivas e psíquicas citadas. Não é o caso de entrar nos pormenores da história, cabe ao leitor fazê-lo, mas devemos ressaltar que se trata de uma atmosfera em que o autor nos coloca entre personagens que se encontraram numa relação agônica com o mundo. Uma relação na qual, em boa parte das situações, a possibilidade de escolha se encontra radicalmente aquém da liberdade desesperada (pela sua imposição e pelo caráter de destinação e responsabilidade universal de cada escolha feita) do existencialismo sartreano, e talvez um pouco mais próxima da ideia de que qualquer tomada de “posição que equivale a um desprezo pela verdade”[3], como escreveu o pensador romeno Emil Cioran. A verdade, para o pensador pessimista, é tanto o nada que vigora no desenrolar da existência quanto o fato angustiante de que, ainda assim, não podemos deixar de escolher.[4] Isso ocorre visto que os personagens constantemente se deparavam com pouco mais do que frágeis possibilidades, encarando uma situação já quase inteiramente dada, acabada, mas que demandava um posicionamento – quase inútil, que acena para o nada existencial de Cioran –, o que acaba por transparecer a precariedade de cada decisão, mesmo a mais trivial.

Um último ponto relevante é perceber como a composição das sensações e dos afetos que estruturam os personagens é fundamental para as pretensões do livro, revelando um ser humano cuja identidade não se configura como uma propriedade privada, controlada e bem gerida, mas como composta por desejos, desilusões, expectativas, cálculos e um entorno que lhe constitui. Talvez por isso, ainda sobrevivam e insistam em sua dignidade precária e quase inútil. Por fim, ressaltamos a importância da atmosfera para que os sinais fortes da precariedade, que permeiam os contos, se apresentem em toda a sua potência descritiva do estado de coisas apontado pela constelação de histórias. Sem tal atenção, o leitor corre o risco de perder de vista o estágio da tragédia e a forma como o autor nos vê inseridos nela. Por tudo o que foi dito, e pela precisão do diagnóstico de parte relevante da sensação cotidiana que nos entorpece, o livro de Rafael Simeão se torna ao mesmo tempo fonte de prazer e de experiencia afetiva (no sentido forte do termo) algo desconcertante, mas, sem dúvida, enriquecedora.

 

 

[1] Sobre essa forma de aparição do niilismo, ver “Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos”, de Osvaldo Giacoia, no livro Metafísica contemporânea (2007), Editora Vozes.

[2] Sobre o tema, ver o artigo “Afectos pictóricos ou em direção a transeunte de Eryk Rocha/Pictorial affects or towards passerby by Eryk Rocha” (2013) e, para uma análise exaustiva, o livro A delicadeza: estética, experiência e paisagens, ambos de Denilson Lopes (2007), Editora UNB.

[3] Trecho retirado do “Ensaio sobre o pensamento reacionário”, de Emil Cioran, em Exercícios de admiração, arquivo digital da editora Rocco Digital, 2000.

[4] Apresentar a comparação com tais elaborações filosóficas tem o objetivo de mapear com mais precisão o deslocamento necessário para compreender a ideia de escolha em personagens e universos como os retratados.

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Filósofo, dramaturgo e montador.